Assim como a excursão do
Salgueiro ao exterior, enredo da Unidos da Tijuca e Festa na Mangueira foram
Monitoradas pelo Regime Civil-Militar
Um enredo contestador, que cutucava com vara curta a dominação cultural e econômica norte-americana, bem ao estilo que se desejava
em tempos de abertura política após anos de intensa vigilância e perseguição a
militantes contrários ao regime civil-militar. Com samba no pé e um tema fabuloso na
cabeça, a Unidos da Tijuca, escola que acabara de ascender ao grupo de elite do
Carnaval de 1981, foi para a Avenida com o enredo “Macobeba: o que Dá pra Rir,
Dá pra Chorar”, inspirado no livro “Manuscrito Holandês ou A Peleja do Caboclo
Mitavaí contra o Monstro Macobeba”, uma alegoria literária de Manoel Cavalcanti Proença. E a mão da
vigilância institucionalizada novamente pesou sobre uma escola de samba carioca,
a exemplo do que já havia ocorrido em outras ocasiões, como a excursão de 1975,
relatada na primeira matéria desta série.
O documento confidencial foi gerado
pelo Ministério da Aeronáutica com data de 23 de fevereiro de 1981, ou seja,
faltando menos de uma semana para o Carnaval. Segundo o relatório,
“Foi
constatada a atuação de comunistas junto à escola de samba Unidos da Tijuca com
o propósito de que o enredo veiculasse uma mensagem política, dentro de sua
linha ideológica”.
O texto do documento cita o nome
Taiguara Chalar da Silva, ou simplesmente Taiguara, cantor que se tornou
símbolo de resistência contra a ditadura ao se tornar um dos artistas mais
censurados pelo regime, com canções engajadas como Hoje (Sorte / Eu não queria a juventude assim perdida / Eu não queria andar
morrendo pela vida...). Nascido em Montevidéu, integrou a ala de
compositores do Salgueiro, seguindo mais tarde para a Unidos da Tijuca. Chegou
ainda a desfilar na Mocidade Independente de Padre Miguel no início da década
de 1990.
Taiguara: cantor e compositor foi perseguido durante o regime militar
É importante notar que mesmo depois do
processo de abertura política, que se deu de forma lenta e gradual, a
vigilância era praticada de forma institucionalizada. O texto do documento não
deixa dúvidas quanto à forma com que integrantes da Unidos da Tijuca passaram a
ser monitorados. “TAIGUARA CHALAR DA SILVA, em contatos com membros da ala
prestista do PCB, comentou ser a primeira vez que uma escola irá às ruas com um
samba de protesto”, descreve o relatório. Além de Taiguara, são citados como
entusiastas da escolha do enredo o então deputado estadual pelo PMDB Raymundo
Theodoro Carvalho de Oliveira, Laura Fraguito Esteves de Oliveira (esposa de
Raymundo e membro do Movimento Revolucionário 8 de Outubro – MR-8). Também
fazem parte da lista da repressão o casal Carlos Alberto Muniz e Maria Ângela
Carvalho de Oliveira.
Depois de uma análise da sinopse do
enredo, o documento expõe que:
“está
caracterizado o uso da mitopoética folclórica proveniente de intelectuais
comunistas como forma de infiltração ideológica através dos enredos das escolas
de samba, o que caracteriza a procura de novos espaços de atuação e veiculação
de mensagens”.
Responsável pela parte visual do
desfile, o carnavalesco Renato Lage (atualmente no comando artístico da
Acadêmicos do Grande Rio), afirmou durante depoimento ao Museu da Imagem e do
Som, em 2016, que não tinha qualquer ciência de que o enredo estava sendo
observado pelo governo militar. “A proposta do enredo veio da direção,
especialmente do diretor da escola, Paulo César Cardoso. Eu fui
tocando o trabalho no barracão e a gente ouvia falar alguma coisa, mas nada
chegou a atrapalhar diretamente a produção do desfile”, explicou.
O documento produzido pelos
militares também demonstrava uma outra preocupação:
“Aproveitamento de
acontecimento nacional de grande repercussão no exterior, como o Carnaval, e a
penetração da imagem da TV capaz de atingir um número imenso de pessoas – com
capacidade ampliada se houver explicação no sentido do enredo, como, aliás, tem
havido nos carnavais anteriores”.
Ou seja, para órgãos do governo, a
transmissão e a difusão do enredo em reportagens nos veículos de comunicação da
época era um motivo a mais de atenção.
Um dos pontos centrais no enredo,
destacado também no samba cantado pela Unidos da Tijuca, dizia: “Macobeba maldito, que devora e mata o mito,
rádio, jornal e TV”. Para os militares, esse trecho “enseja que a ação do monstro (Macobeba) esteja ligado à censura (devora a
torre de rádio, jornal e TV), e vinculada ao exílio de pessoas (Mitavaí toma o
caminho do mar), que, entretanto, retornariam...”. E continua: “Dissimuladamente, apregoa o conceito de
‘unidade’ (palavra de ordem do PCB – Partido Comunista Brasileiro) para incitar
a luta contra as multinacionais através da expressão “no dia em que o povo todo
se der as mãos, neste dia o monstro Macobeba morrerá”.
O documento tem como anexo
reportagem de página inteira veiculada pelo Jornal “O Dia”, datada de 18 de
fevereiro de 1981. Com o título “Unidos da Tijuca Abre Críticas contra as
Multinacionais”, a sequência a ser apresentada no desfile é dissecada para os
leitores, com uma explicação do diretor Paulo César Cardoso: “O nosso enredo é
simplesmente uma crítica de advertência, sem ser um enredo pessimista ou de
oposição a quem quer que seja”, esclareceu. Incorporada com o espírito do herói
Mitavaí, a Unidos da Tijuca abriu o desfile das grandes escolas no Carnaval de
1981 entre percalços, contratempos, aplausos e consagrações.
O Desfile e a Peleja
Às 21 horas de um domingo de Carnaval
marcado pela desorganização da Riotur (empresa de turismo do Rio de Janeiro,
então responsável pela organização dos desfiles e vendas dos ingressos), a
Unidos da Tijuca entrou na Sapucaí com duas horas de atraso. Mas valeu a pena a
espera. O público foi brindado com uma escola recém-chegada ao grupo de elite
do Carnaval, mas com apresentação digna de uma agremiação de ponta. O enredo,
que meteu tanto medo no governo brasileiro, foi um dos destaques do desfile da
amarelo e ouro do morro do Borel, zona Norte do Rio de Janeiro. A imprensa, já
respirando os ares da abertura, adorou.
Uma das representações do monstro Macobeba foi como um polvo cujos olhos eram dois monitores de TV, numa crítica à dominação da mídia pelas multinacionais
Tão impressionante quanto o discurso
nacionalista do enredo foi a plástica elaborada pelo jovem Renato Lage, artista
que trabalhava no departamento de arte da TV Educativa e que começou a carreira em escolas de samba como
assistente de Fernando Pamplona, no Salgueiro, em 1977. Lage utilizou copinhos
plástico para decorar o monstro Macobeba, que tinha ainda dois monitores de TV
ligados representando a dominação midiática sobre a massa. A criatividade foi laureada
com o prêmio “Estandarte de Ouro” concedido pelo jornal O Globo como o melhor o
melhor enredo do Carnaval de 1981.
Outra representação do monstro Macobeba: copinhos de plástico revestiram a estrutura da alegoria, recurso que foi extremamente elogiado pela crítica carnavalesca
A Unidos da Tijuca alcançou um honroso
oitavo lugar, mas pelo menos na pista de desfiles, o herói Mitavaí, arquétipo
de todo brasileiro, venceu Macobeba – que (por que não?) poderia ser representado
pela própria vigilância dos governo - em uma peleja épica e inesquecível. Por fim, a
arte venceu a força de um regime já em adiantado estado de decomposição.
Dia das Mães em Mangueira
Os
arquivos que revelaram a vigilância do regime civil-militar também trouxeram à tona
informações sobre uma festa em comemoração ao dia das mães, realizado na quadra
da Estação Primeira de Mangueira, em 10 de maio de 1981. A celebração teve entre
os participantes o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), sociedade civil
independente que passou a atuar em 1978. Na ocasião, segundo o relatório,
seriam homenageadas as mães dos “mortos e desaparecidos”.
O
documento adverte que:
“Durante aquelas
comemorações, Cirene Moroni Barroso, mãe de uma moça que desapareceu no
Araguaia, deverá falar narrando o drama da filha, a fim de causar impacto ao
público presente”.
Há
poucas ou nenhuma informação relevante sobre a realização do evento. Mas é
importante registrar que o relatório trazia uma recomendação expressa: “para
difusão externa, este documento deverá ter seu texto descaracterizado”.
Ao final do documento, a recomendação para que a mensagem contida no relatório fosse descaracterizada
Vale
lembrar ainda que o informe, datado de 8 de maio, foi produzido dias depois de
uma tragédia, símbolo da agonia do regime que acabaria em 1985: o episódio
conhecido como “Bomba do Riocentro”, um atentado terrorista promovido pelo
serviço de espionagem do Exército em 30 de abril de 1981.
Na
ocasião, 20 mil pessoas estavam reunidas no Centro de Convenções localizado na
zona oeste da cidade para um show em celebração ao dia do trabalho e em protesto
contra o regime. O ato reuniu artistas como Chico Buarque e Luiz Gonzaga.
Foram explodidas duas bombas no estacionamento do RioCentro, ocasionando a morte de dois agentes infiltrados pelo Exército. O episódio chamou a atenção para atividades terroristas praticadas pelo próprio regime, cuja imagem começou a desabar frente à opinião pública.
Foram explodidas duas bombas no estacionamento do RioCentro, ocasionando a morte de dois agentes infiltrados pelo Exército. O episódio chamou a atenção para atividades terroristas praticadas pelo próprio regime, cuja imagem começou a desabar frente à opinião pública.
Tanto no caso da Unidos da Tijuca, quanto no
caso do evento do dia das mães em Mangueira não tiveram qualquer interferência
prática nos propósitos das respectivas agremiações. Mas é importante conhecer como
o regime continuou a monitorar os passos de atividades culturais, mesmo após
iniciado o processo de abertura política. Passadas cerca de quatro décadas, alguns
fantasmas do regime que não poupou brasileiros da espionagem, da tortura e da
corrupção ainda estão aí para nos lembrar que Macobeba foi ferido de morte, tomou
o caminho do mar, jurando um dia voltar. O monstro não morreu. Nessa peleja, somo todos mitavaís.
E Macobeba continua entre nós.
E Macobeba continua entre nós.
Confira o link do vídeo do desfile da Unidos da Tijuca em 1981: