segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

FOLIA VIGIADA - PARTE 2

Assim como a excursão do Salgueiro ao exterior, enredo da Unidos da Tijuca e Festa na Mangueira foram Monitoradas pelo Regime Civil-Militar




            Um enredo contestador, que cutucava com vara curta a dominação cultural e econômica norte-americana, bem ao estilo que se desejava em tempos de abertura política após anos de intensa vigilância e perseguição a militantes contrários ao regime civil-militar. Com samba no pé e um tema fabuloso na cabeça, a Unidos da Tijuca, escola que acabara de ascender ao grupo de elite do Carnaval de 1981, foi para a Avenida com o enredo “Macobeba: o que Dá pra Rir, Dá pra Chorar”, inspirado no livro “Manuscrito Holandês ou A Peleja do Caboclo Mitavaí contra o Monstro Macobeba”, uma alegoria literária de Manoel Cavalcanti Proença. E a mão da vigilância institucionalizada novamente pesou sobre uma escola de samba carioca, a exemplo do que já havia ocorrido em outras ocasiões, como a excursão de 1975, relatada na primeira matéria desta série.
            O documento confidencial foi gerado pelo Ministério da Aeronáutica com data de 23 de fevereiro de 1981, ou seja, faltando menos de uma semana para o Carnaval. Segundo o relatório,
“Foi constatada a atuação de comunistas junto à escola de samba Unidos da Tijuca com o propósito de que o enredo veiculasse uma mensagem política, dentro de sua linha ideológica”.
O texto do documento cita o nome Taiguara Chalar da Silva, ou simplesmente Taiguara, cantor que se tornou símbolo de resistência contra a ditadura ao se tornar um dos artistas mais censurados pelo regime, com canções engajadas como Hoje (Sorte / Eu não queria a juventude assim perdida / Eu não queria andar morrendo pela vida...). Nascido em Montevidéu, integrou a ala de compositores do Salgueiro, seguindo mais tarde para a Unidos da Tijuca. Chegou ainda a desfilar na Mocidade Independente de Padre Miguel no início da década de 1990.



Taiguara: cantor e compositor foi perseguido durante o regime militar

É importante notar que mesmo depois do processo de abertura política, que se deu de forma lenta e gradual, a vigilância era praticada de forma institucionalizada. O texto do documento não deixa dúvidas quanto à forma com que integrantes da Unidos da Tijuca passaram a ser monitorados. “TAIGUARA CHALAR DA SILVA, em contatos com membros da ala prestista do PCB, comentou ser a primeira vez que uma escola irá às ruas com um samba de protesto”, descreve o relatório. Além de Taiguara, são citados como entusiastas da escolha do enredo o então deputado estadual pelo PMDB Raymundo Theodoro Carvalho de Oliveira, Laura Fraguito Esteves de Oliveira (esposa de Raymundo e membro do Movimento Revolucionário 8 de Outubro – MR-8). Também fazem parte da lista da repressão o casal Carlos Alberto Muniz e Maria Ângela Carvalho de Oliveira.
            Depois de uma análise da sinopse do enredo, o documento expõe que:

“está caracterizado o uso da mitopoética folclórica proveniente de intelectuais comunistas como forma de infiltração ideológica através dos enredos das escolas de samba, o que caracteriza a procura de novos espaços de atuação e veiculação de mensagens”.

Responsável pela parte visual do desfile, o carnavalesco Renato Lage (atualmente no comando artístico da Acadêmicos do Grande Rio), afirmou durante depoimento ao Museu da Imagem e do Som, em 2016, que não tinha qualquer ciência de que o enredo estava sendo observado pelo governo militar. “A proposta do enredo veio da direção, especialmente do diretor da escola, Paulo César Cardoso. Eu fui tocando o trabalho no barracão e a gente ouvia falar alguma coisa, mas nada chegou a atrapalhar diretamente a produção do desfile”, explicou.
            O documento produzido pelos militares também demonstrava uma outra preocupação:

“Aproveitamento de acontecimento nacional de grande repercussão no exterior, como o Carnaval, e a penetração da imagem da TV capaz de atingir um número imenso de pessoas – com capacidade ampliada se houver explicação no sentido do enredo, como, aliás, tem havido nos carnavais anteriores”.
Ou seja, para órgãos do governo, a transmissão e a difusão do enredo em reportagens nos veículos de comunicação da época era um motivo a mais de atenção.
          Um dos pontos centrais no enredo, destacado também no samba cantado pela Unidos da Tijuca, dizia: “Macobeba maldito, que devora e mata o mito, rádio, jornal e TV”. Para os militares, esse trecho “enseja que a ação do monstro (Macobeba) esteja ligado à censura (devora a torre de rádio, jornal e TV), e vinculada ao exílio de pessoas (Mitavaí toma o caminho do mar), que, entretanto, retornariam...”. E continua: “Dissimuladamente, apregoa o conceito de ‘unidade’ (palavra de ordem do PCB – Partido Comunista Brasileiro) para incitar a luta contra as multinacionais através da expressão “no dia em que o povo todo se der as mãos, neste dia o monstro Macobeba morrerá”.
            O documento tem como anexo reportagem de página inteira veiculada pelo Jornal “O Dia”, datada de 18 de fevereiro de 1981. Com o título “Unidos da Tijuca Abre Críticas contra as Multinacionais”, a sequência a ser apresentada no desfile é dissecada para os leitores, com uma explicação do diretor Paulo César Cardoso: “O nosso enredo é simplesmente uma crítica de advertência, sem ser um enredo pessimista ou de oposição a quem quer que seja”, esclareceu. Incorporada com o espírito do herói Mitavaí, a Unidos da Tijuca abriu o desfile das grandes escolas no Carnaval de 1981 entre percalços, contratempos, aplausos e consagrações.

O Desfile e a Peleja
       Às 21 horas de um domingo de Carnaval marcado pela desorganização da Riotur (empresa de turismo do Rio de Janeiro, então responsável pela organização dos desfiles e vendas dos ingressos), a Unidos da Tijuca entrou na Sapucaí com duas horas de atraso. Mas valeu a pena a espera. O público foi brindado com uma escola recém-chegada ao grupo de elite do Carnaval, mas com apresentação digna de uma agremiação de ponta. O enredo, que meteu tanto medo no governo brasileiro, foi um dos destaques do desfile da amarelo e ouro do morro do Borel, zona Norte do Rio de Janeiro. A imprensa, já respirando os ares da abertura, adorou.




Uma das representações do monstro Macobeba foi como um polvo cujos olhos eram dois monitores de TV, numa crítica à dominação da mídia pelas multinacionais

“O nacionalismo também desfilou num enredo politicamente atualizado. A escola Unidos da Tijuca misturou folclore e economia numa fábula de entendimento instantâneo: o caboclo Mitavaí contra o mostro multinacional Macobeba. São agora personagens insubstituíveis na surrada economia brasileira”, escreveu Wilson Figueiredo, articulista de política do Jornal do Brasil na edição de 08 de março de 1981. 
           Tão impressionante quanto o discurso nacionalista do enredo foi a plástica elaborada pelo jovem Renato Lage, artista que trabalhava no departamento de arte da TV Educativa e que começou a carreira em escolas de samba como assistente de Fernando Pamplona, no Salgueiro, em 1977. Lage utilizou copinhos plástico para decorar o monstro Macobeba, que tinha ainda dois monitores de TV ligados representando a dominação midiática sobre a massa. A criatividade foi laureada com o prêmio “Estandarte de Ouro” concedido pelo jornal O Globo como o melhor o melhor enredo do Carnaval de 1981.


Outra representação do monstro Macobeba: copinhos de plástico revestiram a estrutura da alegoria, recurso que foi extremamente elogiado pela crítica carnavalesca

A Unidos da Tijuca alcançou um honroso oitavo lugar, mas pelo menos na pista de desfiles, o herói Mitavaí, arquétipo de todo brasileiro, venceu Macobeba – que (por que não?) poderia ser representado pela própria vigilância dos governo - em uma peleja épica e inesquecível. Por fim, a arte venceu a força de um regime já em adiantado estado de decomposição.   


Dia das Mães em Mangueira
Os arquivos que revelaram a vigilância do regime civil-militar também trouxeram à tona informações sobre uma festa em comemoração ao dia das mães, realizado na quadra da Estação Primeira de Mangueira, em 10 de maio de 1981. A celebração teve entre os participantes o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), sociedade civil independente que passou a atuar em 1978. Na ocasião, segundo o relatório, seriam homenageadas as mães dos “mortos e desaparecidos”.
O documento adverte que:
“Durante aquelas comemorações, Cirene Moroni Barroso, mãe de uma moça que desapareceu no Araguaia, deverá falar narrando o drama da filha, a fim de causar impacto ao público presente”.
Há poucas ou nenhuma informação relevante sobre a realização do evento. Mas é importante registrar que o relatório trazia uma recomendação expressa: “para difusão externa, este documento deverá ter seu texto descaracterizado”.


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Ao final do documento, a recomendação para que a mensagem contida no relatório fosse descaracterizada

Vale lembrar ainda que o informe, datado de 8 de maio, foi produzido dias depois de uma tragédia, símbolo da agonia do regime que acabaria em 1985: o episódio conhecido como “Bomba do Riocentro”, um atentado terrorista promovido pelo serviço de espionagem do Exército em 30 de abril de 1981.
Na ocasião, 20 mil pessoas estavam reunidas no Centro de Convenções localizado na zona oeste da cidade para um show em celebração ao dia do trabalho e em protesto contra o regime. O ato reuniu artistas como Chico Buarque e Luiz Gonzaga. 
  Foram explodidas duas bombas no estacionamento do RioCentro, ocasionando a morte de dois agentes infiltrados pelo Exército. O episódio chamou a atenção para atividades terroristas praticadas pelo próprio regime, cuja imagem começou a desabar frente à opinião pública.
 Tanto no caso da Unidos da Tijuca, quanto no caso do evento do dia das mães em Mangueira não tiveram qualquer interferência prática nos propósitos das respectivas agremiações. Mas é importante conhecer como o regime continuou a monitorar os passos de atividades culturais, mesmo após iniciado o processo de abertura política. Passadas cerca de quatro décadas, alguns fantasmas do regime que não poupou brasileiros da espionagem, da tortura e da corrupção ainda estão aí para nos lembrar que Macobeba foi ferido de morte, tomou o caminho do mar, jurando um dia voltar. O monstro não morreu. Nessa peleja, somo todos mitavaís. 
E Macobeba continua entre nós. 

Confira o link do vídeo do desfile da Unidos da Tijuca em 1981:
  

Um comentário:

  1. Mais uma boa postagem! Parabéns, Gustavo!

    Incrível como nem mesmo a maneira de expressar o medo do comunismo foi atualizada dessa época pra agora.

    Uma dica: considere colocar suas postagens no Medium, uma plataforma que é melhor pra quem posta e pra quem lê.

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